01 junho 2012

Talhado para o Quarto Poder I Hermes Machado

 Talhado para o Quarto Poder I No Mundo e Nos Livros

Não faz muito tempo que Jorge ouvira de seu filho, o curioso Jéferson, o relato que se sucede. Os alunos estavam reunidos no grande cômodo destinado às aulas do curso de 8ª série do ensino fundamental de uma escola pública brasileira. Jéferson fazia parte dos que estavam na sala esperando pela entrada do professor de Ciências que naquele especifico dia ministraria duas aulas seguidas. Os que estavam na sala não eram tantos, já que muitos dos colegas de classe, sequer passaram do portão pra dentro da escola. Apesar de boa parte do grupo de alunos se terem saído de seus lares com destino à escola carregando apetrechos desnecessários em suas mochilas para as aulas, ali, diante do portão de entrada, esvaiu-se a disposição para o aprendizado. Preferiram permanecer do lado externo do auspicioso casarão de ensino do suposto saber. Eram conhecidas as justificativas dos alunos rebeldes para a cabulação freqüente das aulas. Na ocasião Rafael disse em alto brado ante a roda que se formou na calçada:
“Entrar na sala pra quê? O maluco de Ciências não ensina nada. Nem sei o nome dele. É o quarto professor substituto no ano”.
Gabriel, por sua vez, endossou a insatisfação do colega:
“Ele entra, faz a chamada de presença, cruza os braços e lá fica como uma ameba estática. A impressão que dá, é que ele está ali pra cumprir seu horário e cair fora. No final do mês o Estado lhe deposita o salário em sua conta bancária e nós? Como ficamos?”.
Enquanto isso na sala de aula, de dentro das mochilas, alguns alunos sacavam câmeras digitais, pequenas filmadoras e micro aparelhos de som com intuito de partilhar com os colegas suas produções em JPG, MP3, MPEG e tantos outros formatos que lhe eram peculiares. Outros, sequer traziam materiais escolares. Em meio à baderna, os poucos alunos que demonstravam interesse pelo ínfimo que tentavam aprender naquela escola; isto se confirmava pelas boas notas, estavam impacientes porque o professor ainda não havia entrado na sala. Passados dez minutos todos daquela sala foram informados pela inspetora de alunos de que o professor Abel teria se ausentado por motivos pessoais e por esta razão, eles deveriam se dirigir ao pátio e lá usufruírem o tempo como eles bem quisessem.  Ao anuncio da inspetora ouviu-se gritos de comemoração e muita algazarra. Ao chegarem no pátio, os alunos da 8ª série se juntaram a outras duas classes. Uma classe de 7ª série, cerca de trinta alunos presentes, teve sua professora de inglês ausentada. Outros 25 alunos de oitava série passariam cinqüenta longos minutos sem ter o que fazer, já que o professor de História deixou de vir à escola. No grande salão, alguns fumavam cigarros. Outros formaram um pequeno círculo para desfrutar de boca em boca do narguile, um aparato árabe usado para queimar fumo através de delicada mangueira com longa piteira na ponta. O tabaco era abafado em essências aromáticas dispostas num vidro em forma de vaso, do mesmo modo que a vida daqueles jovens. Depois de aprisionados, o tabaco e as essências eram tragados para os pulmões por algum tempo. Tempo vital desperdiçado no preparo de jovens para longa jornada laboral que se avizinha. Diante disso, eram sopradas de modo a esvair-se no grande território dos esvaecidos. Duas aulas. Cinqüenta minutos por cada aula. Cem minutos de ociosidade. Tempo esfumaçado. Apesar de pouca idade, Jéferson ia desenvolvendo seu senso crítico a partir das observações que fazia, sobretudo quando estava na escola. Jorge incentivara Jéferson desde muito cedo a observar e refletir sobre tudo que lhe parecesse estranho a ordem das coisas. Jéferson raciocinava para o pai:
Por conta do interesse de governabilidade dessa minoria é sempre imprescindível que a massa seja funcional. Aí está a razão pela qual até hoje vemos no ensino educacional, onde tudo começa para a vida dos homens futuros, a engenhosa ferramenta desmotivadora e formadora de homens preparados apenas para servir, contudo jamais para criação, já que é manca no seu bojo a educação que recebem de governos e tem vocação perniciosa tornando-os trabalhadores limitados”. “Se vamos pra escola, decerto é para aprendermos alguma coisa. Não é para perder o precioso tempo que temos ao preparo dos estudos e da cidadania para aquilo que observo ocorrer dentro da minha escola”. Jorge, o pai, percebeu que o filho estava bastante insatisfeito com a escola. Descrente, talvez fosse a melhor palavra que representasse o sentimento que se alojara em Jéferson.
“Filho, você pode descrever sua insatisfação pra mim?  – O pai lhe incentivou a falar”. Jeferson, então, se pôs a relatar:
“Desde o instante que entro na escola com o interesse de aprender, sinto que as pessoas estão ali porque estão obrigadas a cumprirem seus papeis. Os alunos e aqui me incluo, não estão interessados em aprender disciplinas, as quais eles estão convencidos que pouco acrescentará em suas formações para a vida prática no trabalho. No entanto, sabem que sem este punhado de entulho disciplinar eles não poderão prosseguir em seus objetivos específicos. Por outro lado, vejo professores desorientados no lidar com os anseios da juventude e sem motivações para ensinar. Muitos entram na sala de aula, fazem o apontamento de presença de alunos apenas para garantir sua própria presença na sala e com isso, salvaguardar seu salário”.
Diante do relato do filho, o pai resolveu alertar o filho para a falta de consciência desses jovens que seguem para escola apenas para cumprir uma obrigação penosa:
“Não se assuste com o que eu vou lhe dizer filho. Desde a fundação deste imenso Brasil estabeleceu-se a engenhosa ferramenta política da funcionalidade, muito comum entre povos e sociedades no mundo onde uma minoria dominante estabelece as diretrizes para distribuição de rendas entre as classes sociais, a saber: a massa funcional, ‘o povo’ e a minoria pensante, ‘a classe dominante’. Por conta do interesse de governabilidade dessa minoria é sempre imprescindível que a massa seja funcional. Aí está a razão pela qual até hoje vemos no ensino educacional, onde tudo começa para a vida dos homens futuros, a engenhosa ferramenta desmotivadora e formadora de homens preparados apenas para servir, contudo jamais para criação, já que é manca no seu bojo a educação que recebem de governos e tem vocação perniciosa tornando-os trabalhadores limitados”. 
Instruído pelo pai, um pequeno comerciante, proprietário de banca de jornal e revistas, talvez por isso, também um aficionado leitor, Jéferson dobrou sua carga de horário reservada para educação escolar. Quando retornava da escola e após algum tempo dedicado ao descanso e lazer, reservava três horas extras diárias para estudos nas disciplinas de português, matemática, ciências, geografia e história. Dispunha de um computador com internet discada e dois cadernos grandes para a organização das matérias. Sempre à noite antes de dormir, lia algumas páginas de um livro indicado pelo pai que tinha o hábito à leitura. Seu pai aconselhava que ler aumentaria sua capacidade de interpretação de textos e compreensão do mundo. Através dos trabalhos literários vertidos em crônicas, contos, romances e poesias, aumentava em Jéferson seu poder de reflexão sobre a vida dos homens e seus anseios. Alguns anos se passaram e o tempo de vestibular para faculdade chegou. Jéferson prestou concurso para jornalismo.
Hermes Machado é escritor paulistano que vive na Baixada Santista. Antes de iniciar a carreira literária atuou como guia para congressos nos Estados Unidos, foi executivo de empresas e gestor de negócio próprio. É autor do romance Vitória na XXV, possui contos e crônicas em sites e jornais impressos no Brasil e exterior.

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