24 novembro 2011

A caneta e a pistola I Hermes Machado

A caneta e a pistola l No Mundo e nos Livros

A caneta tinteiro pena de ouro MontBlanc descansa confortavelmente sobre a escrivaninha, enquanto observa atentamente o estudo empreendido pelo homem iluminado. Cônscio de seus atos, o desembargador se esmera no preparo de mais um dentre tantos acórdãos. A toga alinhada pelo vapor de lavanderia está pendurada no chapeleiro em um canto da sala e pronta para entrar em cena. Ele se veste diante da deusa Thémis de olhos vendados que repousa sobre um pedestal de mármore edificado especialmente para o ícone. No espelho, harmoniza os cabelos deslizando o pente pelos fios grisalhos. Entre vistos, relatórios e discussões de autos culminam em elementos essenciais para a elaboração de acórdãos. A caneta se manifesta e derrama a tinta no papel em rubricas desenhadas pelo homem sereno, acastelado pela distinta toga. De qualquer modo, seu traçado azul não é o termo de um processo. Ao condenado há saídas por meio de recursos de apelações. Satisfeitos em suas rotinas a caneta e o Desembargador cumprem seus desígnios.
Nem tão distante dali, o homem obscuro se revira de um lado para o outro, mas é tomado pela insônia. Ainda morna, a pistola Magnum .45 debruçada na cadeira que serve de criado-mudo ao lado da cama divide espaço apertado com o capuz de lã preta e o pente carregado. Em pesadelos o rapaz repassa seus assaltos, seqüestros e encomendas de queima de arquivo. Entre devaneios, a Magnum desfere suas cápsulas de aço e pólvora sob a mira e disparo do homem encapuzado, tenso e impreciso. Entre alvos, muitos erros resultantes de balas a esmo endereçadas a inocentes que não estavam no seu plano de execução. Para esses só lhes restam recursos no plano divino. Hesitante, mesmo assim a Magnum segue atraída pelo sumo vermelho que se espalha de cada vitima abatida pelo bárbaro. Dever do dia cumprido, o desembargador despede-se dos companheiros de profissão e retorna para casa. No caminho, enquanto dirige seu automóvel importado e blindado, repassa mentalmente suas decisões tomadas. O relator sente-se em paz consigo, pois pre
sidindo os julgamentos, reconhece a paridade de interpretação nos votos dos desembargadores que o acompanharam na pauta do dia. Para. Defronte do portão eletrônico de sua mansão aciona o controle remoto para ergue-lo. Súbito, uma motocicleta dobra o quarteirão em alta velocidade e avança em sua direção trazendo dois indivíduos. O que dirige usa capacete. O homem obscuro está na garupa e cobre sua face com capuz preto. Arma em punho, os motoqueiros preparam a cilada. Surgem pelo lado esquerdo do veiculo. O bárbaro investe às cegas descarregando sua arma contra o alvo previamente encomendado por um bandido de alta periculosidade que foi julgado e condenado pelo desembargador a cumprir sua pena em regime fechado numa penitenciaria de segurança máxima. Efetua vários disparos contra a porta e vidro do carro onde está o motorista. A mescla de vidro e policarbonato laminado com 50 mm de espessura resiste. Tempo suficiente para uma pronta reação do homem iluminado que pula para o banco do passageiro, abre a porta e sai. Saca sua pistola Glock 17 em calibre 19mm com apontador laser. Usando o próprio automóvel como escudo, arrasta-se rapidamente até a parte lateral traseira e num movimento certeiro ele se ergue e desfere oito tiros contra os marginais.
A toga alinhada pelo vapor de lavanderia está pendurada no chapeleiro em um canto da sala e pronta para entrar em cena. Ele se veste diante da deusa Thémis de olhos vendados querepousa sobre um pedestal de mármore edificado especialmente para o ícone. No espelho, harmoniza os cabelos deslizando o pente pelos fios grisalhos.
Duas balas acertam o tanque de combustível da moto. Ela explode. Entre os tiros dados e o revide dos marginais, uma bala contra o peito do desembargador o faz desabar. Seis longos e aterrorizantes minutos se passam. A esposa e os dois filhos adolescentes saem pra fora e entram em pânico ao se depararem com o homem iluminado estendido e imóvel defronte da casa onde moram. Ouve-se a sirene. Chega a primeira viatura de polícia. Os moradores saem de suas casas e se aglomeram no local. Três corpos permanecem estendidos, inertes. Dois deles sobre o asfalto acinzentado. Há fogo e muita fumaça negra. O outro está estirado com as costas sobre as gélidas lajotas de mármore da calçada. Os dois policiais descem do carro e correm. Um deles aciona o extintor contra o foco de incêndio. Contida as chamas, ele observa minuciosamente os motoqueiros e nota entre as poças de sangue seis perfurações de grosso calibre. Duas, contra o peito do homem de capacete e quatro contra a face desfigurada do homem de capuz. A Magnum .40, ainda cálida, repousa inerte junto aos dois corpos parcialmente incinerados e sem vida. O outro policial encontra o desembargador caído com as costas escoradas no chão. A esposa grita. Pede socorro. O filho mais velho num ato momentâneo de insanidade corre onde os dois motoqueiros estão. O policial percebe sua investida e o detém. Sirenes ensurdecem o local. Chegam simultaneamente mais duas viaturas de policia e uma patrulha de resgate do corpo de bombeiros. Os policiais providenciam um cordão de isolamento da área. O paramédico se ajoelha a fim de auscultar o peito do desembargador. A camisa de linho branco está manchada. “Ele respira”, admite o doutor.
No bolso da camisa no lado esquerdo do peito do iluminado, o sangue azul da caneta se funde à tinta vermelha que escorre parca. Desta fusão renasce o sangue púrpuro.

Hermes Machado é escritor paulistano que vive na Baixada Santista. Antes de iniciar a carreira literária atuou como guia para congressos nos Estados Unidos, foi executivo de empresas e gestor de negócio proprio. É autor do romance Vitória na XXV, possui contos e crônicas em sites e jornais impressos no Brasil e exterior.

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