Despedida antes da hora I No Mundo e Nos Livros
Lá estava Amâncio Carrasco com seu cão. Ele que adotara por preceito fazer parte daqueles que levados pela compaixão, tinha por hábito premiar com a adoção cachorros abandonados nas ruas, de porte grande e com idade avançada. Neste caso, pensava ele, por conta da não preferência para esses cães, dado o custo para alimentá-los, a sujeira que estes produzem com suas abastadas fezes e xixis, e espaço físico para mante-los livres das correntes.
Contrariado, lá estava ele acompanhado de seu bichinho de estimação,
desta vez, um cão da raça Dobermann aos seus olhos, visto que para os
médicos que o avaliaram, prescreveram no prontuário do animal se tratar
da raça S.R.D.
– S.R.D. são eles – sentenciou Carrasco, ante a maledicente sigla para: sem raça definida.
Estando com aproximadamente nove anos de vida sendo três sob a tutela de
Amâncio, Apolo tinha porte e aparentava altivez apesar de, na ocasião,
com dores mancava do membro posterior direito.
Já, no consultório da clínica veterinária apossado de laudos, raios-x e
caixas de remédios, seu tutor precisou tomar uma difícil decisão.
Ante o exposto pela doutora, diagnóstico de ostossarcoma canino, a ele
lhe restava duas saídas: na primeira, amputação do membro posterior
direito, visitas indispensáveis à clínica para sessões quimioterápicas
bem como administração constante de remédios via oral sem falar dos
custos orçamentários e dos agressivos efeitos colaterais que estas
drogas provocariam ao seu cão que lhe dera até então tantas alegrias,
proteção para seu lar e dezesseis pontos no pulso direito em uma única
ocasião que "o deus grego do mundo cão" lhe ladrou assim que adentrava a
casa carregando algumas latas de carnes para dito, filho de pêlo, em um
dia que precisou fazer horas-extras no trabalho e chegou de volta a
casa em horário não costumeiro.
Na segunda saída; bem, esta lhe pareceu mais sensata. Vendo que na
primeira hipótese, o sofrimento do animal e de sua família se estenderia
por mais algum tempo ao lado de um cão condenado que em nome da
“ciência experimental dos doutores de faz de conta, muitas vezes,
manufaturadores de exames, biópsias, cirurgias que deveras, só trazem
sobrevida aos seus bolsos já empanturrados de ganho ilícito à custa do
ludíbrio daqueles que sofrem por quererem a qualquer preço salvar seus
entes irracionais”, precisou ainda, ouvir da médica chefa acompanhada de
seis residentes, todos vestidos da mais cândida cor, a garantia de
melhor qualidade de sobrevida para o pé na cova, ou melhor, pata na
cova.
Num profundo suspiro de pesar e vendo que os sete anjos os observavam
gélidos esperando sua decisão, Carrasco abraçou ternamente seu cão,
beijou-lhe o focinho e acompanhando-o até a sala reservada para
eutanásia ficou ao seu lado até que tudo se desse por consumado.
Hermes Machado é escritor paulistano que vive na Baixada
Santista. Antes de iniciar a carreira literária atuou como guia para
congressos nos Estados Unidos, foi executivo de empresas e gestor de
negócio próprio. É autor do romance Vitória na XXV, possui contos e
crônicas em sites e jornais impressos no Brasil e exterior.
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